quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Da idéia do valor inerente

Da idéia do valor inerente à abolição da exploração animal

Luciano Carlos Cunha
Qua, 19 de Novembro de 2008 00:00

(Texto da palestra apresentada no dia 28 de outubro de 2008, na mesa redonda em homenagem à Prof.ª Dra. Sônia T. Felipe, no Seminário de Ética e Filosofia Política da UFSC).

Proponho-me, nessa apresentação, a mostrar como, a partir da ênfase na coerência moral e nas exigências formais de um princípio ético (universalizabilidade, generalidade e imparcialidade), elementos muito presentes na obra da Prof.ª Dra. Sônia T. Felipe, chega-se a uma posição abolicionista quanto ao uso de animais. Para tal, valho-me da análise dos conceitos de valor inerente e vulnerabilidade, elementos básicos na teoria de direitos desenvolvida pelo filósofo Tom Regan, um dos autores, dentre outros, que tive oportunidade de conhecer a argumentação a partir das aulas e escritos da professora Sônia T. Felipe. Não reconstituo aqui a argumentação que faz a ponte, na proposta de Regan, entre o reconhecimento do valor inerente e o surgimento de direitos. Para a compreensão do que abordo aqui, basta lembrar que os direitos defendidos por Regan na obra The Case for Animal Rights, são direitos morais básicos. Diferentemente de direitos adquiridos, os direitos básicos seja são independentes da performance de quaisquer atos e do lugar que se ocupa nos arranjos institucionais. Diferentemente dos direitos legais, não dependem de estarem declarados na forma de lei, e nem variam de acordo com a época ou de acordo com diferentes sociedades. Ao invés, precisam estar amparados num princípio ético universalizável, ou seja, capaz de ser compreendido e aceito por qualquer ser dotado de razão[1].

Uma das exigências de todo julgamento, para que possa ser classificado como um juízo ético, segundo toda uma tradição que funda a ética na razão, é a imparcialidade. Há uma ligação da imparcialidade com o princípio formal da justiça, aquele que exige dar aos indivíduos o que lhes é devido. Não se cumpre tal exigência quando indivíduos similares são tratados dissimilarmente, ou quando indivíduos diferentes são tratados similarmente. O princípio é formal porque ele não especifica o que é devido aos indivíduos. Apenas diz: seja o que for devido, a justiça não é feita se indivíduos são tratados diferentemente sem se citar uma característica moralmente relevante que justifique o tratamento diferente, ou se indivíduos são tratados de forma igual a despeito de características moralmente relevantes que apontem que, devido às diferenças, o tratamento diferente é necessário moralmente.

A interpretação normativa do princípio formal da justiça como a igualdade dos indivíduos, incorporada por Regan, envolve ver certos indivíduos como dotados de valor em si mesmos, que o autor denomina valor inerente. Esse valor é (a) conceitualmente distinto do valor intrínseco que é atribuído às experiências que os indivíduos possuem (por exemplo, prazeres e satisfações de preferências); (b) não é redutível ao valor intrínseco - não se pode determinar o valor inerente de alguém por totalizar o valor intrínseco de suas experiências - aqueles que possuem vidas mais prazerosas não possuem mais valor inerente do que os que possuem vidas menos prazerosas e vice-versa, nem aqueles que tem mais preferências cultivadas possuem mais valor inerente do que os que não têm e vice-versa; (c) incomensurável com o valor intrínseco, tanto de suas experiências quanto com o valor intrínseco das experiências de qualquer outro indivíduo, ou seja, os dois valores não são comparáveis e não devem ser tomados um pelo outro dado que o valor inerente não é quantificável, nem em quaisquer soma de valor intrínseco de suas experiências nem totalizando o valor intrínseco de experiências de outros indivíduos. Ver sujeitos morais (agentes ou pacientes) como possuidores de valor inerente é vê-los diferentemente de, e como algo mais do que, meros receptáculos daquilo que é intrinsecamente valioso.

Regan defende a não-quantificação do valor inerente, porque, se admitidos graus, será preciso algum critério para se determinar a quantidade de valor inerente - o que poderá ser qualquer coisa como pertencer a tal raça, sexo, espécie ou, como nas teorias perfeccionistas, a posse de certas virtudes. Admitir então, graus de valor inerente seria abrir uma porta para visões perfeccionistas de justiça, que poderiam requerer, enquanto uma questão de justiça, escravizar aqueles que tivessem menor valor inerente para servir aos que tivessem mais. Como tal teoria de justiça é inaceitável, todos os que possuem valor inerente, o possuem igualmente.

O valor inerente não aumenta nem diminui: (a) De acordo com aquilo que se faz ou se deixa de fazer: o santo não tem mais valor inerente do que o criminoso e vice-versa. (b) De acordo com o indivíduo ser útil aos interesses de outros indivíduos: o filantropo não tem mais valor do que o vendedor inescrupuloso, e vice-versa. (c) De acordo com o indivíduo ser o objeto de interesse de outros indivíduos; o indivíduo amado não tem mais valor inerente do que aquele que ninguém se interessa pelo seu bem-estar e vice-versa. O valor inerente é essencialmente igualitário e não-perfeccionista.

Em virtude do valor inerente de agentes morais não aumentar ou diminuir de acordo com sua felicidade comparativa ou a soma de seus prazeres sobre as dores, seria arbitrário manter que pacientes morais possuem menor valor inerente porque seu leque de experiências é menor do que o de agentes morais. Além disso, devido à característica do valor inerente dos agentes morais não variar de acordo com a posse de certas virtudes ou de acordo com sua utilidade aos interesses de outros sem se abrir a porta para injustiças do tipo presentes nas teorias perfeccionistas, não se pode sustentar sem arbitrariedade a exclusão de pacientes morais da atribuição desse valor.


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Fonte: Pensata Animal

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