quarta-feira, 23 de julho de 2008

EXPLORAÇÃO DA VIDA

Filber Cristiano Chaves
cpdanimal@gmail.com

Nas sociedades, tanto passadas como presentes, a riqueza e a liberdade sempre coexistiram com a miséria e o desrespeito aos direitos. Esta é a principal contradição, que permanece apesar das leis em contrário, apesar de toda luta e progresso.

De certo modo, não é fácil entender o que é a pobreza, a maneira como atinge o ser humano. Ao menos, para aqueles que gozam de alguma proteção do sistema e vivem com uma razoável sensação de segurança. Ainda que, a cada dia, seja mais claro que as ameaças afetam a todos, alguns mantêm seus lares, seus empregos e suas rotinas dentro de certos padrões de normalidade e bem-estar.

Mas, o que diriam aqueles excluídos, sem a mesma proteção? Como se sente aquela parcela da população – na verdade, a grande maioria – que nunca experimentou o que os padrões vigentes têm como normal? Para estas pessoas, a vida reserva condições precárias de bem-estar, material e psicológico. Pois, na realidade dos grandes centros urbanos, de seus recessos mais ocultos, fome, violência e ausência de perspectivas continuam imperando e agridem tanto o corpo como a mente.

A riqueza, o acesso aos serviços, é um fator primordialmente determinado pela sociedade, assim como a pobreza e o abandono. Suas condições surgiram do processo histórico de exploração, que reservou a poucos benefícios que deviam ser de todos. A sociedade criou e viveu sempre num sistema onde o trabalho das massas sustenta o conforto e o bem-estar de minorias dominantes. Nesse sentido, a sociedade atual contém vestígios da injustiça que caracterizou todas as suas antecessoras.

Mesmo a noção de "sujeito de direito", tão valorizada, esconde muito de injustiça. Traduz a concepção do ser humano como possuidor de direitos inalienáveis, tais como a vida, a dignidade, a realização de seus potenciais. Para garanti-los, a sociedade criou leis e instituições, as quais representam, ou deviam representar, o melhor de um sistema humano e igualitário.

No entanto, como surgiu esta noção? Em seu próprio significado, está oculta a raiz de contradições, que continuam a manifestar-se no dia-a-dia das relações sociais. Basicamente, "sujeito de direito" significa: pessoa que é sujeito de seu próprio direito, ou seja, que atua para exercê-lo e fazê-lo respeitado. Nessa sociedade, vários grupos e indivíduos deram seu sangue, em diversos momentos da História, para exercer seus direitos e exigir que fossem respeitados.

Pode-se dizer que o primeiro direito conquistado foi o de lutar e defender-se contra a exploração. Pois, houve um tempo em que esta era considerada tão comum a ponto de ser uma ofensa, um absurdo!, reagir ou indignar-se. Esperava-se das massas mais pobres que apenas calassem e aceitassem suas condições. No entanto, isto nunca se verificou, tal como as elites queriam. E graus extremos de violência levaram a revoltas inevitáveis.

Assim, teve origem uma luta árdua. Mas, foi apenas há poucos séculos, com certas mudanças na sociedade, que a reação obteve resultados mais decisivos. Até a instauração do sistema industrial, costumes tão antigos como a escravidão ainda estavam presentes. Nesse caso, a crescente demanda da indústria, seja por mão-de-obra, seja por mercados consumidores, tornou importante que os escravos fossem libertos, para serem convertidos em operários assalariados. De modo que houve uma confluência da luta social com profundas mudanças econômicas na própria sociedade.

E muitas mudanças, a partir daí, se seguiram. As várias minorias, pouco a pouco, ganharam força e autonomia. Isto se deu na medida em que se tornaram capazes de protestar e fazer-se ouvir. Com o tempo, a arena de confrontos ampliou-se, chegando aos palanques e aos tribunais. Enfim, leis surgiram, tornando ilegais formas históricas de agressão e contribuindo para a mudança dos costumes.

Assim, cada qual a seu turno, trabalhadores, mulheres, negros, fizeram valer os seus direitos. Foi por causa de seu esforço que o voto, a noção de igualdade, tanto política como social, tornou-se um valor básico da sociedade. Da mesma forma, a liberdade, o acesso aos serviços, foram incorporados à cultura como um avanço – sempre graças à luta de amplos setores, antes marginalizados.

E é por isso que a expressão "sujeito de direito" é tão contraditória. Traduz uma forma de respeito que depende da capacidade do indivíduo lutar contra a exploração. Na verdade, é um conceito nascido no âmago de uma sociedade violenta, em que a violência só foi detida pelo esforço de muitas gerações.

Os direitos humanos nunca foram concedidos por espontânea vontade, mas tiveram que ser conquistados. Ainda hoje, têm que ser mantidos, à custa de incessante vigilância, sob pena de serem "tomados". A sociedade vive ainda à sombra da exploração, que é nossa herança do passado.

Aqueles capazes de lutar são reconhecidos – mas, e os que não podem? Ficam à mercê de manipuladores, relegados a segundo plano por governos, como se vê em muitos países do mundo. Porque ainda não prevalece uma verdadeira noção de direitos humanos, mas sim os interesses de parcelas reduzidas da sociedade, sem maiores compromissos com a coletividade.

Por causa disso, há um grupo de seres vivos para os quais os avanços são escassos. Para os animais, que sempre foram explorados, o debate sobre justiça e igualdade pouco contribuiu, no sentido de melhorar sua situação. E isto acontece ainda quando um movimento crescente luta para defendê-los. Sua realidade é de contínuo sofrimento, imposto das mais variadas formas.

De certo modo, os animais ainda estão na origem daquela escalada histórica, que deu aos seres humanos uma relativa liberdade. Se espanta lembrar que pessoas já foram usadas como animais, devia espantar que animais ainda recebam um tratamento indigno, sejam usados como objetos e privados de liberdade. O motivo dessa situação, que manteve os outros seres vivos isolados, é muito simples e pode ser sintetizado em poucas palavras.

Os animais não são "sujeitos de direito". Perante a lei, são considerados "objetos de direito", assim como os bens materiais, como qualquer objeto. Na verdade, isto traduz a condição de seres que, privados de raciocínio, tal como o dos seres humanos, nunca foram capazes de lutar pelos próprios direitos. Embora hoje contem com a defesa de certas organizações sociais, durante eras este apoio não existiu, e por este motivo sua situação se agravou a um ponto alarmante.

O que revela, com muita clareza, como a sociedade trata aqueles que não podem se defender. Os animais são, de fato, incapazes de se defender, pois se pudessem fazê-lo há muito teriam lutado contra o sistema que os explora. Numa situação hipotética, teriam dado seu sangue para conservar o direito sobre seu corpo, sobre sua liberdade. Mas, como isto nunca se deu, as forças que lucram com sua exploração puderam agir como desejavam. E pior, usam as próprias limitações dos animais como pretexto, como que os culpando por sua situação.

Houve um tempo em que a limitação do raciocínio foi usada como justificativa para violências contra seres humanos. Em primeiro lugar, contra os loucos, que foram tirados do convívio social para o recesso dos manicômios. Nesses locais, receberam o tratamento que a sociedade julgou cabível: prisão, maus-tratos, total abandono. Esta situação continuou até que os loucos foram aceitos – também eles – como portadores de uma forma de razão, que tem suas próprias características e não pode ser comparada aos padrões usuais da sociedade.

E é preciso recordar outras épocas, outras formas de agressão, baseadas em argumento parecido. De certa forma, todas as minorias foram consideradas "menos capazes", portanto merecedoras de escravidão. Em certo sentido, isto foi usado contra as mulheres, para justificar o domínio exercido pelos homens (obviamente, baseado na força). E foi usado contra povos inteiros, como os indígenas das Américas, considerados inferiores porque sua cultura não tinha a mesma evolução técnica conhecida pelos europeus.

Como foi dito, todos esses grupos resistiram. Através de seu esforço, firmaram o conceito de igualdade, que abrange todos os seres humanos. Porém, pouca gente aceita que a igualdade deve ser um valor mais amplo, referente a todos os seres sencientes, i.e., capazes de sentir. O mesmo preconceito que, tantas vezes, justificou a violência contra pessoas, nutre ainda a violência e a exploração dos animais. E, ao invés de contestá-lo, grandes parcelas da humanidade ainda consideram isto válido.

Por que seria? Mesmo que os animais sejam mentalmente mais simples, não tenham os mesmos potenciais da espécie humana... eles não são obrigados a tê-los. Assim como, na sociedade humana, deve-se respeitar as diferenças, devia ser também no contexto da vida. Pois, sem esse respeito, nasce a exploração e uma forma de exploração não é pior nem melhor do que outra. Ao contrário, há uma estreita relação, sendo que cada qual se nutre de todas as demais.

Assim, o que se verifica é um cenário paradoxal, que apresenta extremos de riqueza, bem-estar e conhecimento lado a lado com seu oposto: a miséria mais atroz, em todos os sentidos. Os valores humanos, ainda que muito exaltados, continuam longe de alcançar sua realização. Eis um quadro assombroso, em que uma sociedade repleta de cultura, tecnologia, convive com a desolação de crianças, adultos e idosos, abandonados nas ruas do mundo, condenados à mendicância.

É preciso indagar: qual o lugar de uma pessoa pobre, sem educação, laços afetivos e sociais, neste cenário que se pretende cada vez mais individualista, tecnológico e sofisticado? Haverá algum lugar, para aquele que está caído? E qual o lugar de um animal (e isto inclui baleias, aves, um cão vira-lata) num mundo mecanizado que evita contemplar a dor?

A sociedade tem julgado inferiores os animais, porque são destituídos dos mesmos potenciais característicos dos seres humanos (ou de uma parcela deles, pois há os casos excepcionais, como mencionamos há pouco). Acontece que o sistema social mantém muitas pessoas à margem, ignorando seus inúmeros potenciais. A ilusão consiste em acreditar que é possível manter a exclusão dos animais, sem que este processo se reflita nas relações entre as pessoas.

O que sempre aconteceu e continua acontecendo é a negação do valor da vida senciente - humana e animal -, sem escolha de vítimas em particular. Tudo que se faz é mudar o discurso, encontrando novos pretextos para o abuso, em diferentes situações. Este ciclo continuará, como tem sido durante séculos, até o dia em que todos os seres capazes de sentir tenham sua liberdade verdadeiramente garantida, e se reconheça que a exploração deve ser abolida por completo das relações sociais.


Filber Cristiano Chaves é estudante de Direito em Florianópolis/SC e integrante do CPDA – Comitê para Pesquisa, Divulgação e Defesa dos Direitos Animais. E-mail: cpdanimal@gmail.com.


Fonte: Sentiens

0 comentários: