sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Filosofia do descaso II

Por que trabalhar o conceito de especismo nas aulas de Filosofia no Ensino Médio? O que o especismo e sua superação, o veganismo, tem a ver com filosofia?

Bom, para defender a necessidade mais que urgente de se trabalhar o conceito de especismo nas aulas de Filosofia no Ensino Médio fundamentarei-me nas três características comumente atribuidas à filosofia nas obras sobre a filosofia e seu ensino e filosofia no Ensino Médio, que são: a filosofia como pensamento conceitual, como saber que se faz dialogicamente e como pensar crítico-radical.

Na prática diária do ensino de filosofia percebe-se, nitidamente, tanto por parte dos docentes, quanto pelos manuais introdutórios à filosofia, que o trabalho conceitual realizado não passa de reprodução dos conceitos "batidos" da história da filosofia, cabendo aos alunos copiar, decorar e, em raríssimas exceções, uns seis alunos sairão do ensino médio sabendo o que Marx quis dizer com ideologia, Locke com propriedade e Aristóteles com potência e ato.

O hábito de divinizar as grandes mentes da história da filosofia e seus respectivos conceitos, impede os professores de filosofia do Ensino Médio de pô-los em xeque, ou, o que é melhor, partir deles para uma nova visão.

É nesse momento que entra a importância de trabalhar o conceito de especismo e, principalmente, a abolição de sua prática, com os jovens alunos. Pois, o descaso com a naturalização de tal preconceito é oriundo da miopia intelectual, da incapacidade dos docentes de questionar criticamente os discursos (e posturas provenientes deles) dos deuses do Olimpo especistas filosófico e científico.

Especismo é um conceito novo, mas, sua prática é milenar. Ele está na pirâmide ética-biológica de Aristóteles, na moral cristã tomista, no animal máquina cartesiano, na ciência moderna e contemporânea, na indústria cultural atual e na prática diária de nossos jovens alunos.

No entanto, para o professor de Filosofia que queira desenvolver uma reflexão, uma análise e uma proposta de superação dessa base filosófico-científico de biocídios é necessário manter um intenso diálogo com as ciências, com a própria filosofia e, não menos, com seus alunos. É através do confronto de idéias, do debate participativo com os alunos que vá além de uma simples "roda de discussão" , de uma conexão direta com os outros saberes com o objetivo de romper com o já estabelecido, que a filosofia no seu carácter dialógico apresenta-se como arma, como ferramenta contra a milenar exploração do não-humano.

O diálogo filosófico parte de questionamentos, questionamentos nascem das dúvidas e as dúvidas originam-se do descontentamento, da desconfiança, do desconforto diante de um estado de coisas, tradicionalmente, estabelecido e inalterado. É desse descontentamento, das inquietações com a realidade à volta que surge a filosofia como um pensar crítico-radical.

Sem dúvida, sem suspeita, sem ceticismo, a filosofia nunca cumprirá com sua verdadeira função social, como bem disse Horkheimer, que se encontra na crítica ao que está estabelecido. O fato de nossos jovens não serem formados para contestar, discordar, desobedecer, duvidar, é um infeliz indicativo de que o carácter dialógico da filosofia e sua espinha dorsal, o pensar crítico- radical não faz mais parte da prática docente filosófica.

Quando se fala de uma prática docente quietista, reacionária, é interessante notar que - paradoxalmente - a alegoria da caverna de Platão tem um lugar de honra nas aulas de filosofia. Porém, que uso é feito dessa belíssima passagem da República: político, gnosiológico, pedagógico? Acredito que nenhum deles. Como é possível uma pessoa que se diz professor de filosofia não procurar sair da caverna ideológica do consumo imoral de produtos extraídos sob tortura de seres tão sensíveis quanto ele mesmo?

O que falta para os atuais professores de filosofia saírem de suas cavernas antropocêntricas, especistas, mecanicistas? Um daimon? Passar por um processo maiêutico às marretadas? A filosofia que eles arrotam em sala de aula não lhes admira mais? Não lhes espanta mais?

A poltrona da passividade (entenda-se imoralidade) que está no fundo da caverna do descaso é demasiadamente aconchegante, impedindo que os docentes de do Ensino Médio tirem suas bundas de lá e, realmente, cumpram com sua função filosófica de questionar a si mesmos, criticamente, revendo seus hábitos e discursos. Enquanto essa utopia não se concretiza, a juventude orfã de filosofia e crítica - mas adotada por um pai anthropos e uma mãe cartesiana - , continuará sendo vítima (e reprodutora) de um sistema econômico, científico e cultural especista, ou seja, biocida.

As filiais de Auschwitz, Treblinka e Sobibor estão funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana em quase todos os países do mundo. Essas filiais continuam funcionando a todo vapor com o aval de quase toda população mundial simplesmente, porque o "produto" processado lá dentro mudou: saiu o humano e entrou o não-humano. Tal atitude com o primeiro é, eticamente, condenável, com o segundo... a aceitação desses campos de concentração de não-humanos é fruto de um ensino banalizador do mal, da aceitação do inaceitável, de uma filosofia que não ensina a reaprender a ver o mundo. Eis a filosofia do descaso.

Filosofia do descaso é falar da filosofia como pensamento conceitual, dialógico e, como crítica radical, sem pensar o conceito de especismo e seus correlatos - biocídio, desigualdade, injustiça - sem dialogar com as ciências "da vida" e as humanidades especistas sua incoerências. Conclusivamente, filosofia do descaso é se dizer crítica radical e não ir na raiz da produção alimentar, vestuária, das experiências biomédicas e das práticas lúdicas e esportivas sádicas que utilizam outras espécies.

Em oposição a essa filosofia do descaso, imoral, servil e passiva que é ensinada hoje, surge uma nova filosofia chamada: veganismo. A filosofia vegana é, como expressou Savater, um "elemento de guerrilha e resistência contra os dogmas que querem nos impor". O veganismo, como materialização da filosofia como pensamento crítico radical, assume a função de demolidor do status quo, da tradição moral especista e antropocêntrica. A filosofia vegana não propõe reforma e sim abolir a moral tradicional.

A crítica vegana é profunda e radical, incomoda e provoca, pois, defronte à ordem e o progresso, é subversiva. Por isso, o veganismo pressupõe coragem e persistência diante do risco. A coragem da filosofia vegana de questionar e lutar pela abolição dos valores e crenças estabelecidos é contraposta pela covardia e preguiça intelectual daqueles que preferem o caminho mais fácil de sempre aceitar o que é conhecido, o dado, o estabelecido acriticamente.

Fonte: Pensata Animal

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