sábado, 30 de agosto de 2008

ÉTICA NA ALIMENTAÇÃO: O FIM DA INOCÊNCIA

Sônia T. Felipe

[Palestra proferida no Encontro Temático da SVB-Brasília, 16 e 17 de agosto de 2008]

As “sociologias da alimentação” investigam as variáveis sociais que influenciam os hábitos alimentares humanos.1 Os padrões morais ou práticas e costumes consagrados por determinada sociedade, que, via de regra, pensamos influenciar apenas nossas práticas sexuais e sociais, estão profundamente ligados à forma pela qual os humanos inventam e preservam estratégias para obter e garantir seu alimento. Pode-se dizer que a escolha da matéria que será transformada em comida e servida à mesa, em balcões de lanchonetes, cafés, embalagens para viagem, supermercados e feiras, revela a moral de determinada sociedade e a ética que rege as escolhas individuais.

Para não deixar dúvida sobre o sentido do termo “ética”, aqui empregue, é bom que seja distinguido do termo “moral”. Enquanto moral é o conjunto de “valores” preservados numa determinada cultura, podendo ser, portanto, relativa à uma cultura e não a outras, ética é a determinação de fundamentar a ação em bases não relativistas. O que é certo ou errado fazer, da perspectiva ética, não muda de cultura para cultura, de região para região, de classe para classe, sexo para sexo, religião para religião, a menos que circunstâncias prementes coloquem os humanos em condições tais que seus atos de sobrevivência não possam mais ser considerados atos livres. Cada uma das influências morais tem seu próprio código moral. Mas, quando falamos de ética na alimentação, estamos falando do projeto humano de buscar um princípio moral não relativo, aplicável à ação de comer, que possa ser aceito como válido por indivíduos formados moralmente em diferentes padrões culturais.

A fim de não perdermos de vista o conceito de ética a partir do qual este texto foi elaborado, é bom lembrar que um princípio ético deve atender a, pelo menos, três requisitos formais: 1. Poder ser aceito por sujeitos capazes de concluir um raciocínio após examinar premissas lógicas [validade universal]; 2. Servir para orientar as decisões em casos de naturezas distintas [generalidade]; 3. Permitir seu emprego independentemente do grau de poder político, religioso e econômico do agente moral [imparcialidade]. Mas, uma ética cujos princípios atendam a essas exigências ainda continua formal. Para superar a formalidade desses critérios, a ética deve, fundamentalmente: 4. Promover o bem daqueles que são atingidos pelas decisões morais [finalidade].

Para tornar mais compreensível o que foi escrito acima, podemos fazer um experimento mental. Geralmente a ética é identificada com a postura da beneficência e da não-maleficência, com o princípio da justiça eqüitativa, com o princípio do respeito à autonomia individual, e assim por diante. A beneficência, a não-maleficência, a justiça e a autonomia podem ser compreendidas então como princípios éticos que servem para nos ajudar a tomar decisões de caráter moral. No entanto, embora compreendamos minimamente o que cada um desses princípios representa em nossa formatação moral, nem sempre conseguimos ver claramente de que modo nossas práticas cotidianas devem ser orientadas por eles. Se pretendemos que nossas decisões e ações sejam éticas, no sentido de que atendem às quatro exigências expostas acima, essas decisões e ações devem ser de tal ordem que possam ser reconhecidas como válidas por qualquer sujeito capaz de raciocinar de modo coerente; devem ser ações cujo sentido e razão de ser possam ser ampliados também para outras decisões de cunho moral; devem ser decisões imparciais, no sentido de que a decisão tem valor moral independentemente do sujeito que a toma; e, finalmente, não são decisões tomadas visando beneficiar o sujeito da ação moral, mas o paciente dessa ação.

Quando aplicamos os critérios éticos à nossa dieta, encontramos um vazio moral. O modo pelo qual nos alimentamos só pode ser considerado “moral” no sentido latino do termo, quer dizer, o que ingerimos é determinado pelo costume ou padrão da cultura na qual nascemos. Mas, será que as decisões e ações relativas ao ato de comer podem ser consideradas universalmente válidas? Será que temos algum princípio ético para orientar nossos atos diários ligados à ingestão de alimentos? Será que esse princípio pode ser pronunciado claramente em público? Será que o princípio que rege nossas escolhas alimentares é um princípio imparcial? Será que nossas escolhas alimentares “beneficiam” os que são diretamente afetados por elas? Examino a seguir duas das escolhas alimentares mais comuns na comunidade moral dos vegetarianos.

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Fonte: Sentiens

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