quarta-feira, 9 de julho de 2008

ENCONTRO NA DIVERSIDADE

George Guimarães

Transcrição da palestra proferida por George Guimarães às 00h15 do dia 4 de maio de 2008 durante o Encontro Nacional de Direitos Animais: www.veddas.org.br/ENDA

De que é feito o nosso movimento? De organizações? Sim, em parte. Mas, antes de mais nada, o nosso movimento é feito de pessoas e das relações entre elas. Pessoas que trabalham além de seus limites por algo em que acreditam. Muitas destas pessoas estão aqui nesta platéia na noite de hoje e eu quero convidá-las para que façam comigo uma reflexão: por que é que fazemos o que fazemos? Nós sabemos que é o certo a ser feito, mas por que isto é certo e por que isto nos leva a impormos, a nós mesmos, os desafios aos quais nos prestamos? Desafiamos à sociedade, às autoridades, ao status quo. Desafiamos aos nossos próprios limites, físicos, financeiros, limites dentro dos relacionamentos interpessoais. Desafiamos, sobretudo, nossos limites emocionais.

Afinal, o que nos move? Eu sei onde buscar inspiração quando o meu corpo e a minha mente me dizem “basta!”. Pode ser numa imagem ou memória de um animal confinado com o qual eu pude ter contato pessoalmente em uma fazenda ou em um laboratório. Na certeza de que seus gritos não estão sendo escutados, eu me lembro que eu posso fazer algo para que eles sejam atendidos. Freqüentemente, nós ativistas tomamos a responsabilidade pelo flagelo infligido aos outros seres, explorados por membros de nossa própria espécie. Me pergunto o porquê dessa sensibilização e já tenho a primeira dica do motivo que nos leva a agir, algo que passa pelo campo da compaixão. Mas isso ainda é muito pouco para explicar o porquê dessas ações.

...

Será que fazemos isso pela paz mundial? Alguém aqui faz isso pela paz mundial? Isso pode ser uma justificativa, mas ainda assim não é o suficiente (ao menos não para mim) para explicar as nossas ações. Alguém aqui se dedica tão veementemente a esta causa com o objetivo de aliviar o sofrimento no mundo? Pelos famintos no mundo? Para preservar a nossa água, a água que servirá aos nossos filhos e aos filhos das outras espécies que dividem esse planeta conosco? Pode ser, mas ainda falta algo.

Será por pura teimosia ou simplesmente uma via de vazão para um espírito rebelde e revolucionário?Aliás, a palavra “revolucionário” é uma boa palavra para nos ajudar a encontrar uma resposta para essa busca por definir o motivo para fazermos o que fazemos. Tomar para si a responsabilidade pela dor do outro, revolução. Acho que já está ficando mais clara a resposta.

...

O motivo para deixar de lado as minhas prioridades pessoais, ignorar os limites do meu corpo no que diz respeito ao sono, a alimentação regrada e outros aspectos da minha saúde física, negligenciando ainda os meus limites emocionais, não deve ser um motivo pequeno. Ainda mais quando penso que, na prática, não tenho um grande poder para intervir em tudo o que desejo combater. Mas ainda assim luto, assim como vocês, com grande custo.

Uma exposição e batalha que sabemos não ter o suporte psicológico à altura para lidar com as suas conseqüências. Os poucos que poderiam nos apoiar também já estão além do seu próprio limite. Por outro lado, são muitos os que prontamente nos criticam sempre que há a oportunidade. Neste aspecto, eu não me refiro apenas aos amigos e familiares que resistem às nossas idéias, ou aos nossos oponentes que são o alvo de nossas campanhas e por isso já deveríamos esperar uma reação de forma a querer nos abalar ou nos enfraquecer. Não é sobre esses que eu estou falando quando me refiro às críticas. Refiro-me à falta de suporte ou ainda ao excesso de ataques originados dentro do próprio movimento.

Enquanto eu continuo a investigar o motivo que nos leva a fazer o que fazemos, quero convidá-los a fazer uma outra reflexão, em paralelo, agora sobre os motivos para deixarmos de fazer tantas ações que poderíamos estar fazendo. Refiro-me aos fatores internos do nosso movimento que limitam a nossa eficiência.

Para fazermos essa reflexão, devemos antes admitir que somos também animais, tão animais quanto aqueles a quem nos propomos a defender. Nem mais, nem menos do que isso. Somos animais, com um aparato físico e emocional semelhante ao de outros. E como animais que somos, precisamos de cuidado, atenção e suporte físico, emocional e social. Precisamos em especial do suporte de nossos companheiros e companheiras de luta neste movimento. Ainda que trilhem por vias diferentes e que mereçam as nossas críticas e sugestões, ou até mesmo a nossa condenação, essas devem ser feitas sem que nos deixemos esquecer de que estamos lidando com animais e de que eles e elas precisam do mesmo suporte físico, social e emocional do qual nós também precisamos. Está na hora de aprendermos a olhar para os nossos colegas ativistas como aquilo que são: colegas em uma mesma luta e com objetivos comuns. Quando, enquanto colegas, eles merecerem a nossa crítica, que ela seja feita como fazemos a um colega, e não com a mesma veemência com que criticamos aos nossos oponentes na luta contra a exploração animal. Quando falhamos em fazer isso, optando por atacar ao invés de criticar, falhamos em preservar nossos próprios recursos, os quais eu não preciso lhes dizer que são escassos. Ao falhar em apoiar os nossos colegas, estamos enfraquecendo o principal recurso que este movimento tem: os seus ativistas. Ao falharmos em nos apoiarmos em nossas diferenças, estamos assassinando o próprio movimento e encontraremos apenas a impossibilidade de concretizarmos os nossos objetivos coletivos.

Ah, sim, a investigação sobre o que nos motiva. Dor alheia, revolução e a nova palavra é “comunidade”. Por que fazemos o que fazemos? Parece que não é simplesmente pela paz mundial, pela erradicação da fome no mundo, pela água, pelo planeta e nem apenas para poupar o outro do sofrimento, não é apenas por todas estas coisas que já aprendemos a listar tão bem em uma apresentação destinada a mostrar os motivos para o outro adotar uma dieta vegana ou para respeitar os direitos animais.

Por que nós fazemos o que fazemos, se não é apenas por nós, pelos animais ou pelo planeta? Talvez não seja para salvar qualquer um desses. Nenhum recurso natural, ser ou objeto, mas para salvar um conceito. Eu tenho uma idéia do que seja. NÓS FAZEMOS ISSO TUDO POR JUSTIÇA! E já é passada a hora daqueles que ainda não se deram conta disto, de perceberem que este é, sobretudo, um movimento de JUSTIÇA SOCIAL. Um movimento que pretende efetivar mudanças nada simples, como por exemplo mudar todos os hábitos da sociedade, inclusive os mais arraigados. Um movimento que pretende tirar de operação as principais indústrias e poderios econômicos em operação na atualidade, como é o caso da pecuária e da indústria farmacêutica. Um movimento que pretende nada menos do que revolucionar a forma como nos alimentamos, vestimos, nos divertimos e pensamos.

Não parece ser o tipo de conquista que pode ser obtida promovendo cursos de culinária ou escrevendo textos sobre o tema. Nem é o tipo de coisa que se pode conquistar realizando alguns protestos ou produzindo pesquisas científicas que demonstram a adequação nutricional ou a superioridade de uma dieta vegetariana. Nem tampouco será um objetivo que poderemos atingir por via da ação direta, da desobediência civil ou do uso da força. Nem tampouco por via do confronto armado, se eventualmente o momento pedir isso. Não poderemos mudar toda a sociedade conversando com os nossos amigos sobre o assunto ou dando entrevistas para atingir as grandes massas, nem tampouco organizando eventos como este Encontro Nacional de Direitos Animais no qual estamos reunidos neste exato momento. Nada disso funcionará!

Bem, eu acabei de dizer a vocês que nada do que fizermos pela libertação animal funcionará, mas acalmem-se, pois a apresentação ainda não acabou.

Na verdade, o que eu quis afirmar foi que nenhuma dessas ações, por si só, funcionará para atingirmos o nosso objetivo. Mas sabem o que funcionará? A união de todas elas!

É claro que isto não significa que cada indivíduo precise desempenhar todas elas. Eu procuro fazer um pouco de tudo em todas as áreas que listei, mas isso não significa que todos precisem fazer de tudo. A cooperação permite que façamos de tudo enquanto movimento, sem que para isso tenhamos que fazer de tudo enquanto indivíduos. Já fazemos individualmente ou em grupo um pouco de cada uma dessas coisas, não fazemos? Pois então, o que é que está faltando? Está faltando que haja um movimento, e não apenas grupos e indivíduos agindo de maneira desarticulada.

Quando deixarmos de ser um aglomerado de ações e passarmos a ser um movimento, não necessariamente um movimento uníssono, mas um movimento articulado (além da nossa comunicação interna, incluo aqui a necessidade por respeito mútuo), aí sim poderemos ser um movimento diverso e ao mesmo tempo único em seu objetivo, que é o da libertação animal. Alguém tem alguma dúvida de que todos os exemplos de ações que eu citei têm como objetivo final a libertação animal? Alguém tem alguma dúvida de que aqueles que se dedicam sinceramente a desempenhar essas ações tenham como objetivo final a libertação animal?

Durante uma das primeiras reuniões que foram realizadas para discutir a proposta e realização deste Encontro Nacional de Direitos Animais, alguém propôs que fosse aproveitada a oportunidade para formar uma federação, ou algo semelhante que tivesse como objetivo unir e representar o movimento, o que me causou enorme estranheza. O nosso movimento não é único, ele é diverso. Isto tem um valor inestimável, pois precisamos ser diversos, e não únicos. Um movimento não precisa ter uma voz uníssona. No entanto, eu não quero dizer com isto que ele não deva ser unido. Um movimento unido não é o mesmo que um movimento único. Eu entendo que um movimento que pretende ser único condena-se a ser um movimento limitado, o que não é e nem deve ser o caso do movimento pelos direitos animais.

Para que possamos caminhar à conclusão da reflexão à qual os convidei há pouco, quero declarar que o que está impedindo o crescimento do nosso movimento não é a falta de união, e sim a falta de cooperação.

...

É claro que eu não estou dizendo que esta seja uma tarefa fácil, a cooperação entre grupos e indivíduos. Esse é justamente o desafio. Um fator que dificulta que haja mais cooperação dentro do nosso movimento são os líderes. Os líderes dentro deste movimento parecem ser por natureza pessoas visionárias, teimosas e perfeccionistas, o que pode ser um perfil bastante complicado. Eu me incluo nesse perfil. Buscando que haja cooperação, nos vemos colocando estas pessoas visionárias, teimosas e perfeccionistas para lidar com o trabalho de voluntários, que por motivos diversos nem sempre podem dar o melhor de si e isso deixa os líderes extremamente frustrados! Apesar de haverem muitos voluntários que podem e de fato dão o melhor de si. Eu tenho muito orgulho de poder contar no VEDDAS com voluntários exemplares, tão determinados e dedicados quanto o líder desse grupo. Mas para que haja de fato cooperação dentro do movimento, temos ainda que colocar esses líderes para conversarem entre si. Sim, essas pessoas teimosas e perfeccionistas, conversando entre si! Isto sem dizer que muitos dos líderes são também pessoas demasiadamente orgulhosas para conseguirem lidar bem com a opinião do outro. Eu só não me incluirei nesta categoria de líderes orgulhosos porque eu sou orgulhoso demais para admiti-lo.

Mas os líderes também têm muitas qualidades. São determinados e não temem o trabalho, não temem ter que abrir mão de seu lazer ou prioridades pessoais para se dedicarem à causa que defendem. Se você considera estar em uma posição de liderança neste movimento e não possui estas qualidades, ou se não está disposto a desenvolvê-las, recomendo que você faça de duas coisas uma: reveja a sua atitude, ousando mais e trabalhando mais, ou reveja se a sua posição deva ser de fato uma de liderança.

Para concluir essa nossa reflexão paralela, quero lembrar que o nosso desafio está na cooperação. Volto a insistir que ele não está na união, pois precisamos ser diversos. Ele está na cooperação e são muitas as situações aonde ela é desejada e possível.

Voltando aos motivos, pergunto a vocês qual deve ser a motivação dos integrantes de um movimento com objetivos tão nobres e grandiosos? O vislumbre de um animal correndo livre em meio à madrugada após ter sido libertado de um laboratório de vivissecção? Ou a satisfação em saber que alguém se tornou vegetariano depois de ter lido aquele panfleto que você tão cuidadosamente pesquisou e escreveu? Alguma destas deve ser a nossa motivação? A satisfação pessoal de uma pequena conquista ou a imagem de liberdade após uma ação direta bem-sucedida? Não, a nossa motivação deve ser a JUSTIÇA! É claro que podemos comemorar essas pequenas conquistas, mas esse não deve ser o foco da nossa motivação. A nossa motivação deve ser superior à busca pelo prazer de uma conquista.

Nosso objetivo não deve ser confundido com nada menos do que uma revolução social, na medida em que exigimos a mudança de hábitos individuais que vão desde os mais simples aos mais complexos, além de pretendermos mudar, ainda que seja como uma conseqüência indireta, todas as estruturas sociais e econômicas vigentes.

...

Não podemos perder de vista o fato de que a luta pelos direitos animais tem objetivos ambiciosos. É por isso mesmo que precisamos desde os cursos de culinária até as ações diretas, dos protestos à produção de textos, das pesquisas científicas e das entrevistas junto à mídia às conversas com amigos, precisamos também de encontros como o presente encontro. Precisamos de todas essas iniciativas, juntas! Volto a insistir que não será nem por uma via, nem por outra, mas por todas elas juntas, que chegaremos à conquista dos direitos animais.

Eu procuro colocar em ação um pouco de cada uma destas vias de atuação (com exceção de uma), e a partir dessa observação me pergunto: por que será que nós ativistas temos tanta dificuldade em enxergar os nossos próprios limites? Eu penso que é porque o que nos move é o nosso desejo por JUSTIÇA, e a esse não podemos aquietar. Podemos procurar nos disciplinar, diminuir o ritmo, fazer menos para podermos continuar fazendo sempre, etc.

Bem, eu não pretendo nesta noite discursar para vocês sobre o tópico da moderação e da disciplina para preservar a saúde e a sanidade, mesmo porque eu não concordo em discursar sobre um tópico para o qual eu próprio não seja um bom exemplo. Quando há tanto a ser feito e há tão poucos fazendo, sabemos que é difícil nos aquietarmos. Somos poucos e precisamos ser muitos. E mesmo que fôssemos muitos, precisamos estar inteiros e aprender como nos mantermos ativos e dispostos. Como indivíduos e como ativistas, somos as partes vitais deste movimento.

O movimento pelos direitos animais, este movimento de justiça social, será um movimento capaz de operar as mudanças que pretendemos operar apenas quando formos justamente isto: um movimento, e não apenas um movimento, mas um movimento de justiça social. E para isso precisamos estar preparados. Enquanto indivíduos, precisamos deixar de lado a nossa ingenuidade e termos a visão clara da dimensão daquilo que pretendemos conquistar com as nossas ações individuais, o que não é pouca coisa. Enquanto grupo, devemos estar prontos e dispostos a respeitar as nossas diferenças, criticando o outro quando for necessário, mas sem deixar-nos esquecer da importância de nos apoiarmos mutuamente, tanto nas vitórias mas sobretudo nas derrotas, tanto nos acertos mas também nos erros. Enquanto movimento, precisamos nos capacitar, debater, dialogar, assim poderemos nos fortalecer com as vitórias e com as derrotas, que não devem ser vistas como vitórias e derrotas individuais ou de um grupo, mas como vitórias e derrotas deste movimento do qual fazemos parte.

Todas as nossas ações, assim como as ações dos nossos colegas, afetam-nos profundamente, e isto acontece justamente por sermos animais, tão animais quanto aqueles aos quais defendemos. Não nos deixemos esquecer das nossas necessidades individuais e sociais, das nossas emoções e do poder que temos, à nossa escolha, para apoiar ou prejudicar os nossos colegas de luta, pessoas com quem compartilhamos objetivos comuns.

Agradeço a vocês, partes vitais deste movimento, pela oportunidade de ter compartilhado com vocês nesta noite. Os aplausos que seguem ficam para vocês.

--

George Guimarães é nutricionista e ativista pelos direitos animais. Dedica-se à pesquisa, aconselhamento e consultoria em nutrição vegetariana em seu consultório e dirige a NutriVeg Consultoria em Nutrição Vegetariana, onde orienta pacientes vegetarianos ou aqueles em transição para o vegetarianismo. Também dirige as duas unidades do VEGETHUS Restaurante Vegetariano, que promove cursos e eventos com o objetivo de difundir o veganismo. Também ministra cursos e palestras sobre o tema da nutrição vegetariana e veganismo em universidades e para o público em geral. Sua formação em nutrição vegetariana é composta em parte pela participação em congressos científicos e conferências no exterior. É docente da primeira disciplina de nutrição vegetariana em um curso de pós-graduação e tem trabalhos publicados em revistas científicas de alcance internacional. Seja no consultório, na colaboração em estudos científicos ou nos restaurantes que dirige, todas suas atividades profissionais são voltadas para a difusão do veganismo. Desde 2006 dirige o VEDDAS, grupo que vem ganhando destaque no movimento de defesa animal. Vegetariano desde os quatro anos de idade e vegano há quatorze anos. E-mail: veddas@veddas.org.br.

0 comentários: