quarta-feira, 8 de julho de 2009

Da farra-de-homens mal-acostumados, contra bois indefesos

Do boi e do homem voltamos sempre a falar, no Estado de Santa Catarina, a cada ano, com a aproximação das festas da ressurreição. Sempre a pretexto de se preservar a cultura e a tradição açorianas, trazidas para a Ilha de Santa Catarina, aficcionados cidadãos, rasgando a Constituição e ridicularizando a ética e a justiça, reúnem-se, levando crianças, tão vulneráveis à violência e à morte como o boi, para correr atrás de um boi em estado de pânico. Parece muito inocente, essa "farra" que mata jovens e meninos, todos os anos, erroneamente denominada "farra do boi", pois, a bem da verdade, ela é simplesmente a farra de alguns poucos homens, com gosto de sangue a lhes anuviar o sabor da própria vida.

O boi corre, exausto, faz investidas contra os que o maltratam, estaca, senta-se, bufa, as narinas dilatadas, o pulmão em sufoco, o coração em disparada, um toco ensanguëntado no lugar da cauda. A desproporção entre a massa muscular ou volume de seu corpo e suas pernas, capacidade pulmonar e resistência cardíaca para esforços em velocidade é o que se apresenta de modo objetivo ao olhar dos Homo sapiens, incapazes de reconhecerem os indicadores da constituição vulnerável do bovino.

Por natureza, esse animal não é de corrida, muito menos de luta. Ele não tem garras nem presas. Não ataca a não ser em legítima defesa, não morde, nem fere, se deixado em paz. O volume de seu corpo, porém, excita os machos que fazem a farra. Confrontar-se com tal volume parece propiciar-lhes o que lhes falta: virilidade. E esta não se mostra boa-coisa. É bruta. Machuca e mata.

Investir contra os que o atacam, nem sempre resulta eficaz para o boi. Para poder investir com sucesso, faltam-lhe os músculos típicos do arranque veloz e da corrida-de-fundo. Falta-lhe, ainda, treinador, massagista, fisioterapeuta, benesses dos reais lutadores humanos, que sobem às arenas do boxe, e das demais lutas nas quais homens confrontam-se fisicamente e fazem a farra da carne maltratada.

Mas, não se trata apenas da constituição anatômica e fisiológica do animal, mas também de sua constituição psíquica. O boi investe contra esse outro animal que o provoca, não porque ache isso uma delícia de brincadeira. Ele o faz, tentando demover o agressor de aproximar-se demasiadamente do seu corpo. Afinal, um corpo enorme, pesando mais de meia tonelada, sustentado e transportado por quatro pernas pequenas e finas, com músculos impróprios para a luta, é tudo o que o animal tem, para mostrar ao homem que se excita em sua presença, que essa tradição não apenas é de pouco bom-gosto, mas cruel em seu propósito, pois parte do suposto de que os animais são objetos da diversão de homens entediados. Bois são lentos ao caminhar. Grande é a queima de oxigênio para mover seu corpo, por isso ele se move com lentidão. Falta-lhe oxigênio.

O mesmo nos acontece. Sofremos quando temos de nos deslocar em velocidade superior à da reposição de oxigênio. Por essa razão, comemoramos tanto o velocista olímpico, o maratonista. Pois o atleta força sua natureza a superar-se. A diferença é que ele escolhe o desafio e o custo de romper seus próprios limites biológicos. O boi não tem escolha. É simplesmente forçado a compor uma cena que jamais poderá lhe propiciar qualquer benefício. Enquanto os atletas treinam anos a fio sua fisiologia, para superar a condição natural e competir com seus iguais, na arte treinada, a maioria dos seres humanos não se dedica a nada disso, pois não vê benefício algum em gastar tanta energia, para compor a cena final da competição, e servir de espetáculo para os sedentários.

Somos como os bois. Sem treino para o jogo. Qualquer esforço sobre músculos do nosso corpo, não utilizados nas atividades sedentárias diárias, resulta em falta de ar, pulsação acelerada, perda de líquido, dores horríveis durante o esforço desmesurado e no dia seguinte. Em nosso psiquismo a reação que se esboça é a de uma profunda angústia, medo de parada cardíaca, medo de sufocar, medo da dor. Sentamos na calçada, ofegantes. Mas, ninguém nos dá cutucadas nem chutes para que prossigamos.

Tudo o que mais abominariam, caso alguém se atrevesse a fazer contra seus corpos, na farra do boi, esses homens fazem contra o animal. Toda a crueldade é praticada em nome da tradição, como se a defesa de um costume fosse um valor absoluto, mesmo quando o costume aparece aos olhos de todos os demais como brutal, violento, inútil, injusto, expressão de um atraso moral inqualificável, pois não faltam argumentos contrários aos mesmos, na mídia impressa, escrita e televisionada.

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Fonte: Pensata Animal

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