segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Não matarás

ARCA Brasil entrevista Maria Lucia Metello, a veterinária que saiu em defesa do direito à vida de milhares de cães condenados em Campo Grande, MS

O Notícias da ARCA entrevistou Maria Lúcia Metello (*), veterinária e advogada de Campo Grande (MS). A profissional destacou-se nacionalmente ao combater a eliminação de animais com suspeitas de Leishmaniose Visceral naquela cidade, onde já foram exterminados dezenas de milhares de animais.
Com veemência, Maria Lucia pede nesta entrevista exclusiva uma postura mais ativa e a mobilização da classe veterinária pelo direito ao tratamento – proibido pelo governo federal –, uma possibilidade concreta de cura aos animais infectados.

Dra. Maria Lucia, poderia dar um beve histórico sobre como a Leishmaniose Visceral se manifestou em Campo Grande e quais as reações dos diversos setores da cidade desde então?
A leishmaniose se manifestou pelo descaso em combatê-la adequadamente, desde quando surgiu o primeiro foco no Brasil. O Poder Público fez o que bem queria, à sua própria maneira. Chegou ao cúmulo de ameaçar multar em R$ 7.000,00 por animal aqueles que impedissem os agentes de saúde de adentrarem as residências para recolher os cães, saudáveis ou não, e levá-los para o extermínio, como se isso fosse resolver o problema dessa letal doença. De início, não houve qualquer esboço de reação. Hoje, no entanto, a população começa a perceber que os seus direitos de propriedade precisam ser respeitados. O direito à saúde, garantido pela Constituição Federal, tem que ser preservado. Estamos seguros que não será com a matança indiscriminada de animais que isso será conseguido. Existem formas mais eficientes que precisam ser adotadas.
O que você tem a dizer sobre a Portaria Interministerial Nº 1.429/2008 que proíbe o tratamento da Leishmaniose Visceral?
Esta portaria é nada mais, nada menos, que o reflexo da arrogante e retrógrada política pública adotada pelo país, que não tem mostrado preocupar-se com a legislação, com a ética e com a moral. O tratamento adequado, ministrado por médico veterinário, é um recurso que a ciência nos oferece e terá de ser permitido.
Você tem algo a comentar sobre os medicamentos da linha humana utilizado no tratamento contra a leishmaniose?
O princípio ativo de todo e qualquer medicamento de uso humano tem a mesma composição e finalidade da linha veterinária. No Brasil, muitos medicamentos existem apenas na linha humana por uma simples questão de interesse comercial. Ou seja, é mais barato fabricar um genérico do que comercializar o mesmo para a linha veterinária, pois, seria este um segundo processo. De uma maneira geral, o uso [de remédios] da linha humana para os animais tem sido feito sem quaisquer problemas. O profissional precisa tomar cuidado com alguns medicamentos que não podem ser usados por restrições em algumas espécies, mas proibir a utilização de medicamentos da linha humana e não fabricá-los para os animais e/ou não permitir seu registro no país é, no mínimo, tendencioso. Além disso, o medicamento que combate a leishmaniose, humana e animal, não tem quaisquer restrições.
Como têm sido as pressões diretas e indiretas do governo local nessa questão?
Existe uma tentativa obstinada para convencer a população a matar o cão em vez de cumprir com sua prerrogativa, que é a preservação da saúde pública, através de campanhas educativas para conscientizar a população a se prevenir dessa letal zoonose, que tem ceifado inúmeras vidas humanas e dizimado a espécie canina em nossa cidade.
Ao seu ver, como devem ser as posturas dos órgãos de classe em torno da Leishmaniose?
Deveriam ser mais vigilantes, adotando uma postura de mais ação. O que adianta o profissional pagar uma entidade que, no final, não defende os seus direitos? O mais elementar direito do médico veterinário é o de usar os recursos da ciência para assegurar a saúde dos animais. De repente, uma portaria, tecnicamente discutível, vem impedir o exercício pleno desse direito e as entidades representativas da classe se omitem ou reagem de forma muito frágil. Entretanto, há que se louvar a ANCLIVEPA por ensejar a Instauração de procedimento administrativo pelo Ministério Público Federal – Procuradoria da República em Minas Gerais, objetivando a coleta de elementos para apurar a ilegalidade da Portaria Interministerial n. 1.426, de 11 de julho de 2008, recomendando a sua revogação. No Mato Grosso do Sul, a ong Abrigo dos Bichos ingressa agora com uma Ação Cautelar questionando a legalidade e a constitucionalidade da portaria.
Você confirma a informação de que a população de cães da sua cidade foi reduzida para 50% devido às mortes causadas pela Leishmaniose?
A população canina de minha cidade já estava reduzida em 50% há dois anos. Hoje, nem sabemos mais quantos cães existem, de fato, pois, apesar das decisões judiciais do TJMS e do STJ, referentes à eutanásia de animais comprovadamente infectados pela leishmaniose, a população tem sido impelida a entregar os seus animais para o extermínio sob fortes argumentos coercitivos e de grande apelo emocional. De fato, em Campo Grande, os veterinários precisaram sentir a diminuição do caixa no final do mês para começar a tomar alguma atitude mais prática em relação à doença.

(*) Não perca!!
A Dra Maria Lucia Metello é uma das lideranças nacionais reunidas no Seminário Veterinário Solidário, organizado pela ARCA Brasil, no próximo dia 17 de Setembro, na palestra Leishmaniose: aspectos éticos e legais do atendimento clínico.

0 comentários: