domingo, 13 de julho de 2008

O “LUXO” DA MORTE

Texto do Blog de Gary L. Francione
14 de março de 2007

No ensaio da semana passada neste blog, eu mencionei que a The Vegan Society entrevistou Peter Singer, Tom Regan e a mim, em sua revista The Vegan. Na entrevista de Singer, ele declara:

“Para evitar infligir sofrimento aos animais—fora os custos ambientais da produção animal intensiva— precisamos cortar drasticamente a quantidade de produtos animais que consumimos. Mas isso significa um mundo vegano? É uma solução, mas não necessariamente a única. Se é com o fato de infligir sofrimento que estamos preocupados, e não com o fato de matar, então eu também posso imaginar um mundo em que as pessoas consomem principalmente alimentos à base de plantas, mas de vez em quando se dão o luxo de comer ovos de aves criadas soltas, ou possivelmente até carnes de animais que vivem uma boa vida em condições naturais para suas espécies e depois são mortos humanitariamente na fazenda”. ( The Vegan, outono de 2006.)


Em uma entrevista de maio de 2006 para a Mother Jones, Singer declara:

“Há um lugarzinho para um pouco de indulgência em todas as nossas vidas. Conheço pessoas que são veganas em seus lares mas que, quando saem para comer num restaurante chique, permitem-se o luxo de não ser veganas naquela noite. Não vejo nada de realmente errado nisso”.

“Não como carne. Sou vegetariano desde 1971. Tornei-me vegano gradualmente. De um modo geral sou vegano, mas um vegano flexível. Não compro coisas não-veganas para mim, no supermercado. Mas, durante minhas viagens, ou nas casas dos outros, terei muito prazer em comer uma comida vegetariana, em vez de vegana”.


É extraordinário que o chamado “pai do movimento pelos direitos animais”:

- seja um “vegano flexível”—isto é, ele não é vegano quando acha inconveniente ser vegano. Isso significa que ele não é vegano e, na realidade, ele disse que ser um vegano coerente é ser um “fanático”.

- ache que um mundo vegano não é “necessariamente” a solução para o problema da exploração animal; e

- caracterize como um “luxo” consumir carne e outros produtos de origem animal.


Mas esses comentários demonstram claramente uma posição que é central na teoria de Singer e que está em absoluto desacordo com a perspectiva direitos animais/abolição. Segundo Singer, é o sofrimento dos não-humanos, e não o fato de os matarmos, que suscita o principal, ou talvez o único, problema moral.

Isto é, Singer não acha que o fato de usarmos e matarmos animais seja um problema sério; o único problema é o modo como usamos e matamos os animais. Se os animais tiverem “boas vidas em condições naturais para suas espécies e depois forem mortos humanitariamente na fazenda”, então não estaremos agindo de maneira imoral ao usarmos e comermos esses animais.

Por que Singer adotaria uma posição dessa? Por que ele acha que matar um não-humano não suscita um problema moral fundamental?

Embora Singer tenha declarado essa posição várias vezes em seus escritos, sua entrevista na The Vegan traz uma recente, breve e clara reiteração de sua visão:

Eu de fato penso que existem diferenças moralmente relevantes entre várias espécies, porque as capacidades cognitivas dos seres são relevantes para, por exemplo, o erro de matá-los. Eu penso que é pior matar um ser consciente de si mesmo, isto é, um ser consciente da própria existência ao longo do tempo e capaz de ter desejos para o futuro, do que um ser que talvez seja consciente mas não é consciente de si mesmo e vive numa espécie de presente eterno. ( The Vegan, outono de 2006).


Em outras palavras, Singer afirma que se um ser não for consciente de si da mesma maneira que um humano normal é consciente de si—isto é, o ser não tem o que chamamos de autoconsciência reflexiva—então esse ser não é consciente de si daquela maneira moralmente relevante que suscitaria, nesse ser, um interesse na própria vida, e que tornaria o ato de matá-lo um erro moral significativo.

Conforme argumentei no meu livro Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? e em outros lugares, a visão de Singer é problemática sob vários aspectos. Primeiro, Singer afirma que há somente uma maneira moralmente significativa de ser consciente de si mesmo—ter o mesmo tipo de consciência de si mesmo representativa que os humanos normais têm.

Há muitas maneiras de ser consciente de si mesmo. Qualquer ser que é senciente ou subjetivamente consciente é, necessariamente, consciente de si mesmo. Anna Charlton e eu vivemos com cinco cachorros salvos do abandono. Quando um de nossos cachorros vê outro de nossos cachorros ganhar um petisco, o primeiro está consciente de que não foi ele quem ganhou o petisco, e vem sentar na minha frente e ali fica, até que eu lhe dê um petisco também. Isso é consciência de si mesmo. Ele é perceptualmente consciente de que outro cachorro é que obteve o petisco, e não ele.

Os humanos podem olhar num espelho e reconhecer sua imagem; os cachorros podem reconhecer o próprio odor em um arbusto que eles visitaram semanas atrás. Trata-se simplesmente de dois tipos de consciência de si. Mas é especista dizer que um tipo de consciência de si é melhor, no plano moral, do que o outro.

Segundo, Singer parece pensar que são apenas os humanos (e talvez os grandes símios não-humanos) que têm desejos para o futuro. De novo, a visão de Singer é especista pois ele afirma que a única maneira de ter um desejo para o futuro é tê-lo exatamente da mesma maneira que os humanos. Se um ser não planejar as coisas com calendários e relógios, então o ser não tem um desejo para o futuro.

Nós vivemos com uma border collie cujo passatempo favorito é passear de carro. Se ela vê as chaves do meu carro em algum lugar, ela as pega com a boca, vem deixá-las aos meus pés e fica olhando para mim. Não há maneira de interpretar esse comportamento senão como uma expressão do desejo de fazer alguma coisa. O fato de ela não usar um relógio de pulso e de não pensar “Eu gostaria de dar um passeio de carro daqui a 15 minutos” é irrelevante. Ela está expressando um desejo quanto a algo que ela quer fazer.

Terceiro, mesmo que a consciência de alguém esteja enraizada em um “eterno presente”, isso não quer dizer que esse ser não seja consciente de si de uma maneira moralmente relevante. Considere um humano com amnésia global transitória, um tipo de amnésia em que a pessoa tem um senso de si mesma apenas no presente, e não tem qualquer lembrança de seu passado nem pensamentos sobre seu futuro. É mais ou menos assim que Singer encara as mentes da maioria dos animais não-humanos—como mentes enraizadas em um presente contínuo. Podemos concluir que um humano com esse tipo de amnésia não tem nenhuma consciência de si? Claro que não. Esse humano é consciente de si, mesmo que seja consciente de si apenas no presente. Similarmente, mesmo se os não-humanos tiverem um senso de si apenas no presente, não podemos dizer que eles não valorizam suas vidas e só se preocupam com o modo como os tratamos. Isso é especista.

Quarto, e o mais importante de tudo, não há nenhuma relação lógica entre as diferenças que ocorrem no nível das características cognitivas e a questão do uso de animais. As diferenças no nível das habilidades cognitivas podem ser relevantes para certos propósitos. Considere o caso de um humano com grave deficiência mental. Podemos preferir não dar uma carteira de motorista a esse humano, devido a sua incapacidade para dirigir. Mas sua deficiência seria relevante para decidirmos se podemos usá-lo, forçando-o a “doar” seus órgãos ou a se submeter a experimentos biomédicos? Não, claro que não. Na realidade, muitos de nós argumentariam que a vulnerabilidade desse deficiente significa que nós temos uma obrigação moral maior ainda para com ele, mas certamente não significa que tenhamos uma obrigação moral menor. Similarmente, o fato de que uma vaca possa ter um mente diferente da nossa pode significar que não devemos dar uma carteira de motorista à vaca, mas não significa que podemos usar a vaca para fins para os quais não usaríamos nenhum ser humano.

Segundo Singer, o veganismo é simplesmente um modo de resolver o problema do sofrimento animal, mas “não é necessariamente o único modo”. Nós podemos também continuar nos permitindo o “luxo” de comer ovos e carnes de animais que tiveram “boas vidas” e são mortos “de modo humanitário”. Dado que Singer promove ativamente varejistas como o Whole Foods, cujos animais certamente não tiveram “boas vidas” nem foram mortos de modo “humanitário”, o que ele está realmente dizendo é que é admissível consumir animais que (talvez) tenham sido um pouquinho menos torturados.

E se formos veganos durante a maior parte do tempo, podemos até nos permitir o “luxo” de comer carnes e produtos animais que tiverem sido produzidos de maneira convencional, quando formos a um “restaurante chique”. Será que essa desculpa só serve para as pessoas com dinheiro suficiente para comer em restaurantes “chiques”? Será que um hambúrguer de vez em quando é uma coisa errada sempre, já que o McDonald’s não é um lugar suficientemente “chique”? Ou comer os hambúrgueres do McDonald’s é uma coisa sempre correta pois o McDonald’s adotou, sob os elogios de Singer, as diretrizes de Temple Grandin para o abate e o manejo?

Isso me deixa zonzo.

Além do mais, como afirma Singer, sua preocupação é com o sofrimento dos animais, e não com o fato de os matarmos, então o próprio comportamento de Singer é inconsistente. Ele afirma que é vegano quando faz compras para si: “Mas, durante minhas viagens, ou nas casas dos outros, terei muito prazer em comer uma comida vegetariana, em vez de vegana”. Então, quando ele está viajando ou comendo na casa de outra pessoa, ele come produtos animais mas não consome carnes (presumo que seja isso que ele quer dizer quando se refere a comer comida “vegetariana”).

Mas por que Singer faria uma distinção entre as carnes e os outros produtos animais? Embora as carnes envolvam a matança do animal, Singer não acha que matar um animal seja moralmente significativo, ou pelo menos não acha que seja significativo o suficiente para fazer do veganismo um imperativo moral. Se o que importa é o sofrimento, os laticínios e os ovos certamente envolvem tanto sofrimento quanto as carnes e seus derivados, e, de todo jeito, depois que os animais que produzem leite e ovos ficam “gastos”, eles acabam nos mesmos matadouros que os criados para produzir carne. De fato, como eu já disse muitas vezes, há provavelmente mais sofrimento num copo de leite do que num bife. Então, ao que parece, se a preocupação de Singer fosse o sofrimento, ele não seria “flexível” quanto às comidas que não fossem as carnes.

Se as idéias de Singer não passassem de meras contemplações de um confuso acadêmico e não tivessem nenhuma conseqüência no mundo real, poderíamos nos sentir tentados a ignorar suas noções elitistas quanto ao que constitui uma consciência de si que seja moralmente significativa para a finalidade de justificar o “luxo” de comer carnes e outros produtos animais. Mas, infelizmente, as idéias de Singer, que são absurdas e especistas, são a fundação do onipresente movimento pela “carne feliz”, que está procurando trabalhar com os exploradores institucionais de animais para tornar a exploração dos não-humanos mais “humanitária”, de forma a podermos aumentar as oportunidades para as pessoas serem “onívoras conscienciosas”.

As idéias de Singer estão sendo implementadas por várias organizações bem-estaristas: desde a PETA, que dá prêmios a Grandin e a mercenários da “carne feliz”, como o Whole Foods; até a Humane Society of the United States, que promove reformas bem-estaristas que aumentarão a produtividade e os lucros dos exploradores de animais, e que patrocina o selo Certified Humane Raised and Handled para assegurar aos consumidores que eles estão agindo de um modo moralmente superior ao comprarem somente certos cadáveres de animais e certos produtos oriundos de seus corpos; e a Vegan Outreach, que afirma que o veganismo “não é um fim em si mesmo. Não é um dogma ou uma religião, nem uma lista de ingredientes proibidos ou leis imutáveis—é somente uma ferramenta para nos opormos à crueldade e reduzirmos o sofrimento”.

Singer e essas organizações bem-estaristas que adotaram a abordagem dele se tornaram sócios dos exploradores institucionais e servem de marqueteiros das indústrias de carnes, laticínios e ovos. As reformas bem-estaristas que eles apóiam fazem muito pouco, se é que fazem alguma coisa, para ajudar os animais. E essas reformas, quando casadas com os elogios de Singer, seu apoio e o apoio da brigada da “carne feliz”, certamente deixam as pessoas se sentindo mais à vontade quanto a continuarem comendo produtos animais, ou quanto a voltarem a comer os produtos animais que elas já haviam passado a evitar.

Para ver qual é o problema com a abordagem de Singer (se isso ainda não estiver claro como a água para você), insira, no quadro de análise de Singer, seus próprios princípios a respeito do racismo, do sexismo ou da homofobia. Como soa, para você, tentar justificar “sair da linha” de vez em quando, com relação a essas formas de discriminação? É correto se entregar ao “luxo” de um pouco de machismo num sábado à noite? É correto se permitir o “luxo” de participar de um comício da Ku Klux Klan? Há um “lugarzinho para a indulgência” se limitarmos nossas ofensas homofóbicas a um dia por semana?

Eis outra citação da entrevista de Singer na Mother Jones:

Eu realmente quero enfatizar que não acho que comer eticamente, em particular do ponto de vista utilitarista, seja uma questão de dizer “Aqui está esta lei rigorosa que eu tenho de fazer tudo que for possível para cumprir”. Eu acho que nós podemos ser eticamente conscienciosos e reconhecer que, às vezes, vamos ter de fazer concessões. Às vezes vai ser muito difícil, muito inconveniente, conseguir a melhor opção, então vamos aceitar outra coisa.


Aplique o mesmo raciocínio às suas próprias idéias sobre o estupro. Seria aceitável dizer que não temos de obedecer rigorosamente à proibição do estupro? Afinal de contas, poderá haver ocasiões em que será “muito difícil, muito inconveniente” não estuprar.

A exploração animal está tão profundamente inserida em nossa sociedade, nossa cultura e nossa história que não estamos acostumados a enxergá-la no mesmo nível das outras formas de discriminação. Se quisermos que haja alguma mudança um dia, teremos de pensar sobre como sair dessa confusão e reconhecer, claramente, que não podemos justificar nenhum uso de animais—por mais “humanitariamente” que os tratemos. Enquanto não estivermos sentindo repugnância pela caracterização dos cadáveres de animais e dos produtos animais como um “luxo”, e enquanto estivermos aceitando a idéia de que não precisamos ser veganos quando acharmos isso “muito difícil, muito inconveniente”, nós não teremos sequer iniciado o processo.

Para terminar, quero contar a vocês uma coisa que aconteceu comigo no último fim de semana. O sábado foi um dia quente e eu fui ao Whole Foods comprar uns vegetais orgânicos. Eu estava com uma camisa de brim por cima de uma fantástica camiseta do Vegan Freak que havia acabado de receber de Bob e Jenna Torres.

Quando eu estava na fila, uma mulher atrás de mim, com um carrinho cheio de comida, incluindo uma grande quantidade de carne e queijo, viu minha camiseta e perguntou o que significava “Vegan Freak”. Eu expliquei que era um website e podcast dedicado à educação vegana. Ela me perguntou se eu era vegano. Eu respondi que já fazia 25 anos que eu era vegano.

Ela disse que tinha sido vegetariana uns anos atrás, mas, como seu marido e seus filhos gostavam de carne, ela acabou voltando a comer carne também, porém acrescentou: “Eu só compro carne aqui. Sou membro da PETA e ela deu um prêmio a este supermercado porque ele trata bem os animais”. Ela me perguntou se eu tinha visto os cartazes perto das carnes e dos ovos, que diziam que o Whole Foods só compra de produtores que criam seus animais “humanitariamente”. Eu respondi que sim. De fato o Whole Foods tem esses cartazes—grandes, até. Eu disse a ela que não acho que a vida dos animais do Whole Foods seja realmente diferente da vida de outros animais, e que, no fim das contas, eles acabam sendo mortos, de todo jeito. A resposta dela: “Sim, mas espero que eles sofram menos”.

E foi aqui que viemos parar, guiados por Singer. O veganismo não é necessário. O “pai do movimento pelos direitos animais” não é sequer vegano e acha que ser um vegano coerente é ser um “fanático”, então por que é que qualquer outra pessoa precisa ser vegana? Podemos desfrutar o “luxo” de comer carnes e produtos que venham de animais menos torturados do que outros, e, se formos veganos durante a maior parte do tempo, devemos nos sentir tranqüilos quanto a nos permitir comer até mesmo animais torturados da maneira convencional, quando estivermos nos ostentando em um “restaurante chique”.

Podemos nos permitir esse “luxo” que apenas a morte torna possível.

Conheça a teoria abolicionista de Gary Francione assistindo a 4 apresentações em tradução autorizada para o português: 1. Teoria dos direitos animais / 2.Animais como propriedade / 3. Direitos animais vs. bem-estar animal / 4. Direito Animal. Clique aqui: http://www.abolitionistapproach.com/?page_id=40

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Gary Francione é professor de Direito e Filosofia na Rutgers University, EUA. Conhecido internacionalmente por sua teoria de direitos animais abolicionista, é um crítico implacável das leis do bem-estar animal e da condição de propriedade dos não-humanos. E-mail: gfrancione@kinoy.rutgers.edu.

Regina Rheda é escritora premiada, vegana desde o ano 2000 e mora nos EUA. Traduziu o livro Jaulas Vazias, de Tom Regan (Editora Lugano). Seu website é http://home.att.net/~rheda/RRHPPortg.html. E-mail: regina.rheda@yahoo.com.br.




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